|
Nicia Vilela Luz. A Amazônia para os negros americanos. Editora Saga.Rio de Janeiro. 1968. 188p. |
_________________
Resenhas: Hiran Reis
http://desafiandooriomar.blogspot.com.br/2012/01/amazonia-para-os-negros-americanos.html
A Amazônia para os Negros Americanos
Temos um destino a cumprir, um “Destino Manifesto” sobre todo o México, sobre a América do Sul, sobre as Índias Ocidentais e Canadá.
(J.D.B. De Bow - De Bow’s Review)
Ao ler, recentemente, “A Amazônia para os Negros Americanos”, da historiadora paulista Nicia Vilela Luz, observamos que as articulações, os conchavos, os artifícios e pressões diplomáticas de toda ordem e o processo de “convencimento” de políticos e empresários brasileiros através de propinas ou oferta de cargos, regiamente remunerados em empresas multinacionais, em troca do controle das companhias estatais e privadas nacionais por estrangeiros não se alterou através dos tempos.
- Matthew F. Maury
Maury nasceu, em 14 de janeiro de 1806, em Fredericksburg, Virginia, USA. Descendente de Huguenotes franceses, por parte de pai, e de Ingleses e Holandeses por parte de mãe, Maury trazia no DNA uma mistura de visionário, cientista e homem de negócios. Incapacitado para o serviço ativo, em virtude de um acidente, foi designado para o “Depósito de Cartas e Instrumentos do Departamento da Marinha em Washington” que, depois de algum tempo, transformou no “Naval Observatory and Hydrographic Office”. Seus estudos a respeito das Cartas dos Ventos das Correntes Marítimas alteraram as rotas dos navios à vela, encurtando os percursos e diminuindo o tempo de viagem, contribuindo, significativamente, para a evolução da marinha mercante americana.
|
Matthew F. Maury |
- Matthew e a Amazônia
O mundo amazônico é o paraíso das matérias primas, aguardando a chegada de raças fortes e decididas para ser conquistado científica e economicamente.(Matthew F. Maury - The Amazon and the Atlantic Slopes of South America, 1853)
Matthew procurou despertar a atenção de seus compatriotas, principalmente os sulistas, para a colonização da Amazônia. Comparava os vales da Bacia do Mississipi com a do Amazonas afirmando que esta última, além de ser duas vezes maior, o trabalho de um único dia por semana era o suficiente para abastecer a mesa do agricultor com abundância. Matthew afirmava que:
Se o comércio estendesse uma única vez suas asas sobre este vale, sua sombra seria como o toque de mãos de um mágico: estes imensos recursos logo se transformariam em vida e atividade.
E continuava dizendo que sob a ação milagrosa do progresso e do comércio a região:
seria levada a “desabrochar como uma rosa” – Temos, portanto, apenas de dar livre curso às máquinas do comércio – o vapor, o emigrante, a imprensa, o machado e o arado – e ela regurgitará de vida. (...) Agora começamos a ver que poderosa máquina é a atmosfera e mesmo que, aparentemente, seja tão caprichosa (...) em seus movimentos, há aí evidência de ordem e arranjo que devemos reconhecer e prova que não podemos negar, pois ela provê com regularidade e certeza esta poderosa precipitação e, é, portanto, tão obediente à lei como é máquina a vapor à vontade do seu construtor. (...)
Está inteiramente dentro do trópico. Seu clima quente e úmido dá origem a um desenvolvimento de forças vegetais, energias produtivas e possibilidades agrícolas as mais ilimitadas e maravilhosas.
As variações de clima negadas a essa região pela latitude, são possíveis graças às cadeias de montanhas e às altitudes, de tal forma que, dentro da extensão das encostas drenadas pelo Amazonas, pode-se encontrar toda variedade de clima com seus produtos peculiares, desde as regiões de neve eterna às de verão perene.
Matthews e seus compatriotas, advogando o princípio do determinismo geográfico, consideravam a Amazônia como um tributário do Mediterrâneo Americano, formado pelo Golfo do México e Caribe. Segundo eles, a Bacia Amazônia fazia parte do Sistema Americano de bacias hidrográficas formado pelo Mississipi e Orenoco. Baseavam esta tese levando em conta a proximidade, relativa, entre a Foz do Amazonas e do Estreito da Flórida além de considerar que os sedimentos, carreados pelo Amazonas, graças às correntes marítimas, passavam pela foz do Mississipi e chegavam até o “Gulf-Stream”.
Além do aspecto comercial, Matthews se preocupava com a problemática que seria criada após a abolição da escravidão nos USA, cuja raça poderia vir a se multiplicar de tal maneira que, no futuro, comprometeria a hegemonia da raça branca. Os sulistas precisavam, de qualquer maneira, livrarem-se do excesso de negros e uma maneira seria enviá-los para a Amazônia Brasileira a exemplo do que já havia sido feito pela “Sociedade Americana de Colonização”.
Sociedade Americana de Colonização: fundada em 1816, com a finalidade de enviar escravos alforriados de volta à África. A primeira leva chegou à Libéria, em 1822.
Matthews como todos os naturalistas e pesquisadores estrangeiros que aqui estiveram, desdenhava, da capacidade dos nossos nativos, aos quais chamava de “povo imbecil e indolente” e concordava, erroneamente, com eles ao considerar como extremamente férteis as terras do Grande Vale do Amazonas. Convencido da superioridade da raça branca ele pretendia que a região fosse povoada pelos negros americanos, logicamente sob o jugo dos brancos, o que mais tarde poderia servir de justificativa para legitimar a posse americana da Região.
Este vale (amazônico) é uma região para o escravo. O europeu e o índio estiveram lutando com suas florestas por 300 anos, e não lhe imprimiram a menor marca. Se algum dia a sua vegetação tiver de ser subjugada e aproveitada; se algum dia o solo tiver de ser retomado à floresta, aos répteis e aos animais selvagens e submetido ao arado e à enxada, deverá ser feito pelo africano. É a terra dos papagaios e macacos e só o africano está à altura da tarefa que o homem aí tem de realizar.
- Missão Herndom-Gibbon
Era preciso revolucionar e anglo-saxonizar o vale constituindo ali uma República Amazônica. (Carta de Maury ao cunhado Herndon)
Maury acreditava, piamente, que Deus mantivera a Amazônia deserta para que os problemas do Sul dos USA pudessem ser resolvidos. O visionário não se contentou em formular teorias e incitar seus compatriotas e colocou em marcha um plano, que tinha como objetivo final, de salvar o instituto da escravidão transportando para a Amazônia os sulistas com seus escravos.
Maury indicou para realizar uma missão exploratória, à Bacia Amazônica, o seu cunhado Tenente da Marinha William Lewis Herndon acompanhado de Lardner Gibbon que partiram de Valparaiso para Lima em fevereiro de 1851. A partir de Lima a expedição se dividiu em dois grupos, Herndon deveria descer o Amazonas depois de alcançar o Marañon e Gibbon desceria o Rio Madeira a partir da Bolívia.
O relatório de Herndon, como não poderia deixar de ser, era uma reafirmação do ideário de Maury, que, aproveitando as informações colhidas pelo cunhado, elaborou uma série de artigos em que qualificava de “japonesa” a política brasileira a respeito da navegação na Bacia do Amazonas apelando para as ambições expansionistas de seus compatriotas. A águia iniciava uma campanha sistemática para estender suas garras e submeter, aos pouco, região aos interesses mercantis yankee. A primeira fase do Plano de Maury entrava em ação.
- Reflexos da Campanha Sistemática de Maury
Em 1850, as Guerras de fronteiras entre Brasil, Uruguai e Argentina, e pelo direito de navegar nas águas da Bacia do Prata, iniciaram quando o governador Juan Rosas, bloqueou os rios da bacia platina ao comércio e à navegação de outros países. As tropas brasileiras venceram Rosas forçando a Argentina a reabrir a bacia para a navegação internacional. Maury atento aos acontecimentos aproveita o momento para excitar as ambições dos empresários americanos exaltando as riquezas da Amazônia.
1853 - é decretada, no dia 27 de janeiro, a abertura à navegação dos rios bolivianos a todas as nações.
1853 - é decretada, no dia 15 de abril, a abertura à navegação dos rios peruanos.
1862 - o General James Watson Webb, ministro plenipotenciário de Washington junto à corte de D. Pedro II, encaminhou solicitação ao Imperador, propondo a vinda e fixação de negros americanos na Amazônia.
1866 - aproveitando-se das dificuldades do Brasil com a Guerra do Paraguai (que os EUA apoiaram dissimuladamente), o governo norte-americano volta a insistir na proposta de assentamento de populações negras no vale amazônico.
1866 - em dezembro, o governo brasileiro liberou a navegação internacional do Amazonas. O decreto estabeleceu que a abertura vigoraria a partir de 7 de setembro de 1867, e definiu quais rios estariam abertos à livre navegação, evitando o acesso irrestrito de estrangeiros à região.
Fonte: LUZ, Nicia Vilela – A Amazônia para os Negros Americanos – Brasil – Rio de Janeiro – Editora Saga, 1968.
========================
Resenha:
O dia em que o Brasil disse Não aos Estados Unidos
Pesquisadora recupera documentos com proposta de deportar negros americanos para a Amazônia
CARLOS HAAG | FEVEREIRO 2009
Fonte: http://revistapesquisa.fapesp.br/2009/02/01/o-dia-em-que-o-brasil-disse-nao-aos-estados-unidos/
Washington, dezembro de 1862: em meio a uma custosa, em vidas e dinheiro, Guerra Civil, em que a União estava desesperada por fundos a fim de sufocar a rebelião dos estados confederados, o presidente Abraham Lincoln, em seu discurso anual, o State of the Union, ousou pedir ao Congresso a liberação de US$ 600 mil para outro fim que não o conflito. “Os congressistas precisam liberar o dinheiro necessário para a deportação de pessoas negras livres para qualquer lugar fora dos Estados Unidos”, afirmou Lincoln – cujo bicentenário de nascimento é celebrado neste mês – em seu discurso anual. Não foi a primeira ou a única vez que o governante, um ano antes da proclamação da emancipação dos escravos, falou oficial e publicamente sobre seu interesse em deportar negros: foram cinco declarações políticas, incluindo-se dois State of the Union e o discurso que precedeu a emancipação. “O local onde penso ter uma colônia é na América Central. É mais próxima de nós que a Libéria [território no continente africano, dominado pelos EUA, para onde foram enviados libertos]. A terra é excelente para qualquer povo, especialmente a semelhança climática com sua terra natal, sendo, portanto, adequada às suas condições físicas”, escreveu num artigo para o New York Tribune, “The colonization of people of african descendent”.
“O plano oficialmente proposto pelo presidente Lincoln e sancionado pelo Congresso, para dar início à tarefa de colonizar fora dos EUA os negros libertos ou em vias de serem libertados no decorrer da guerra, está em vias de se concretizar no máximo em cinco semanas. Eles serão transportados à custa do governo e mantidos durante a primeira estação à custa do Estado e para tal uma verba foi aprovada pelo Congresso”, afirmava, em agosto de 1862, um editorial do The New York Times. Foi com esse espírito que Lincoln nomeou como representante extraordinário e ministro plenipotenciário dos Estados Unidos James Watson Webb, um antiabolicionista que via a libertação de escravos como potencialmente mais perigosa do que a escravidão em si. “Não é apenas do interesse dos Estados Unidos e absolutamente necessário para sua tranquilidade interna que se livre da instituição da escravidão, mas também, em consequência do preconceito de nosso povo contra a raça negra, se torna indispensável que o negro liberto seja exportado para fora de nossas fronteiras, pois conosco ele jamais poderá gozar de igualdade social ou política”, afirmou Webb em carta ao secretário de Estado de Lincoln, William Henry Seward.
© REPRODUÇÃO
|
presidente Lincoln e seu ministro para o Brasil, James Watson Webb |
O tom, mais “discreto”, ainda assim não renegava (mesmo que Webb, então na situação, passasse a se dizer contrário à Secessão e, logo, à “lepra da escravidão”) os editoriais que escreveu, em 1843, para o Courier & Enquirer: “Libertar os negros do Sul e deixá-los onde se encontram será o início de um conflito que só poderá terminar com o extermínio de uma ou da outra raça. A raça negra é caracterizada por uma ignorância degradante e inferioridade mental, enquanto os escravocratas são honrados, patriotas e de mente elevada”. E foi na condição de representante oficial do governo americano que o mesmo Webb, em maio de 1862, submeteu ao governo brasileiro a proposta da constituição de uma empresa binacional de colonização da Amazônia com negros americanos livres ou em que seriam libertados ao longo da Guerra Civil. “O (marquês de) Abrantes apresentou três propostas do ministro americano, cujo fim é transvasar para o vale do Amazonas principalmente os negros que se libertassem nos Estados Unidos. O Abrantes ficou de tirar cópias de tão singulares propostas e de responder como convém ao Webb”, anotou dom Pedro II em seu diário em junho daquele ano, já ciente do projeto de “deportação” de negros. O primeiro historiador a chamar a atenção para essa história exótica foi Sérgio Buarque de Holanda, no prefácio que escreveu para o livro A Amazônia para os negros americanos, de Nícia Vilela, em 1968. “Não me ocorreu procurar em fontes documentais brasileiras outras notícias sobre o projeto. Percorrendo, com outros interesses, o arquivo pessoal do ministro Webb, hoje na biblioteca da Universidade de Yale, pude achar dois textos que se relacionam com o projeto”, afirmou Buarque de Holanda. A “dica” chamou a atenção da historiadora Maria Clara Sales Carneiro Sampaio, que saiu em busca de mais informações. Não achou nada no Brasil e partiu para Yale, onde teve acesso aos mais de dois mil documentos (que transcreveu) da coleção James Watson Webb Papers, dos anos 1862 e 1863.
Em meio à papelada examinada por Maria Clara havia: minutas do projeto, cartas enviadas a Seward sobre o andamento das negociações e anotações de Webb sobre a situação do Brasil, que, acreditava, estava carente de mão-de-obra escrava e aceitaria, de bom grado, receber os negros americanos em seu território. A partir do material levantado, a historiadora escreveu sua dissertação, Fronteiras negras ao Sul, orientada por Maria Helena Machado, professora associada da USP, onde o trabalho acaba de ser defendido. Maria Clara, em seu doutorado, vai expandir a pesquisa para os outros países também sondados por Lincoln. “Esse estudo revela as pouco conhecidas influências da Guerra Civil no Brasil. A ironia está no fato de o presidente Barack Obama ter Lincoln como modelo: se houvesse prevalecido a vontade dele, os EUA teriam expatriado os afro-americanos”, diz Maria Helena. “Ele foi um homem branco do seu tempo e, claro, compartilhava muitas das dúvidas de racistas sulistas sobre a possibilidade de negros se transformarem em cidadãos. No caso das expatriações, o interesse de Lincoln revela a sua dúvida se ex-escravos seriam assimilados na sociedade americana, mas também o seu feeling de que mais brancos, em especial aqueles dos estados fronteiriços entre o Norte e o Sul, apoiariam a abolição se fosse assegurado a eles que os negros libertos seriam ‘realocados’”, avalia a brasilianista Barbara Weinstein, professora de história em Yale.
© REPRODUÇÃO
Escravos americanos
O principal argumento apresentado por Webb em seu projeto baseava-se no suposto “estado crônico de falta de mão-de-obra no Brasil, em especial nas províncias do Norte”: “O rápido aumento do valor do negro no Rio de Janeiro e o avanço do café, somado ao decréscimo da população escrava, ao contrário da nossa, e que é de um tipo de africano bastante inferior aos trazidos ao Brasil, está rapidamente despovoando as províncias do norte do Império (Northern Provinces). A grande necessidade do Brasil agora é mão-de-obra. Pelas características de clima e solo, o trabalho negro é preferível ao branco”, justificava o americano. Não deixa de elencar as vantagens do uso do negro americano. “Deus criou nos corações do povo dos Estados Unidos, cujo clima e solo são propícios ao trabalho escravo, uma aversão à escravidão que resultou na maior guerra civil jamais vista. O negro que está prestes a ser manumisso (libertado) foi treinado para o trabalho: é dócil e tratável, mas suspira por liberdade. Deus, em Sua infinita sabedoria e misericórdia, tornou possível por meio da política e interesses dos EUA e do Brasil assegurar-lhe essa liberdade. O Brasil sofre pela falta de mão-de-obra. Quatro milhões de negros preparados para o trabalho, cada um valendo o equivalente a três africanos nativos, estão suspirando por liberdade e prontos para comprá-la no solo congenial do Brasil e sob as leis e instituições liberais brasileiras.” Afinal, continua Webb, “a Constituição do Brasil reconhece como iguais os negros dos homens brancos e igualmente elegíveis com ele aos mais altos cargos do Império, onde a distinção social entre as raças branca e negra, que já existiu, está quase erradicada”. O projeto, assegurava, era filantrópico.
A base seria uma concessão ao governo brasileiro do direito de exclusividade de trazer para o Brasil colonos, africanos ou afro-descendentes, emancipados ou em via de o ser. O nome da proposta indica o sentido real: concessão ao general James W. Webb, que teria esse privilégio mantido por 20 anos. “As pessoas a serem introduzidas pelo concessionário e seus associados serão chamadas de ‘aprendizes’: seu trabalho por um período de cinco anos e um mês do dia do seu desembarque no Brasil será propriedade do concessionário”, afirmava o contrato de concessão. “Em vez de libertar o escravo imediatamente, ele será preparado para gozar de sua liberdade e, ao mesmo tempo, pagar por seu ensino, pelo custo de seu transporte e por sua futura moradia”, observava Webb na proposta. “Há indicações fortes de que havia interesses comerciais no projeto, tanto de Webb como de brasileiros, interessados em lucrar com a administração de uma companhia de imigração, nos moldes lucrativos das companhias de colonização na África, como a que gerou a Freetown, em Serra Leoa, em fins do século XVIII, por abolicionistas ingleses, com o objetivo de desembarcar africanos apreendidos em tráfico ilegal, ou a compra do território da Libéria pela American Colonization Society, nos anos 1820”, avalia Maria Helena. “O dedo de Deus aponta para as províncias do Norte do Brasil como o futuro lar dos escravos libertos dos EUA. O Brasil e o negro liberto irão ambos se beneficiar na mesma medida: um tratado entre os EUA e o Brasil, pelo qual todos os negros libertos dos EUA lá sejam agraciados com terras pelo governo do Brasil e ao término dos anos estabelecidos se tornem cidadãos brasileiros com todos os direitos e privilégios da população negra do Império”, argumentava Webb.
A Amazônia brasileira nos tempos da proposta americana de Webb
Reservadamente, o ministro americano até concede que, no caso dos estados do Sul do Brasil, a vinda de imigrantes brancos europeus seria uma solução, mas isso não daria certo na região dos trópicos ao norte. “Estando o tráfico de escravos em seu fim e verificando-se que a colonização da Europa consta em leis imprudentes e egoístas, bem, que sejam humildes os estadistas brasileiros frente às perspectivas que o futuro apresenta. A não ser que as províncias do Sul sejam satisfeitas com trabalhadores de fora, o que só pode ser conseguido com uma mudança nas leis de colonização do Império, as províncias abaixo do Equador perderão seus trabalhadores e o Norte, por causa disso, vai voltar a ser habitado por indígenas e bestas selvagens dos quais tinha sido resgatado com a introdução do trabalho africano”, escreveu Webb, em despacho sigiloso, para o secretário de Estado Seward. Mas não apenas a União olhava para o Brasil como uma válvula de escape capaz de resolver os problemas que se avizinhavam com a abolição generalizada dos africanos, resultado do avanço da guerra. Os estados confederados já cogitavam esse movimento muito antes de Lincoln, em especial a partir de outro projeto polêmico, desenvolvido em finais da década de 1840 pelo tenente sulista Matthew Fontaine Maury, estudioso das correntes marítimas, inventor do telégrafo submarino e do torpedo fluvial, que seria usado pelos confederados, para os quais ele era um ídolo da estatura de Robert E. Lee, durante a Guerra Civil. “Maury propunha, sob a capa da discussão sobre a livre navegação do Amazonas, a imigração em massa dos plantadores de algodão sulistas e seus escravos para o vale amazônico, ou ainda a imigração forçada dos escravos, tornando-se a Amazônia a válvula de segurança dos EUA”, afirma Maria Helena.
Segundo a pesquisadora, prevendo a possibilidade de confronto entre Norte e Sul e as ameaças de perda do controle da situação que poderiam surgir com uma “guerra de raças”, Maury preconizava a transferência dos negros, capitaneada pelos sulistas, para o Brasil. “Não estou querendo transformar um território livre em escravista ou introduzir a escravidão onde ela não existe. O Brasil é um país tanto quanto o é a Virgínia. Sei que você se alegraria ao despertar um dia e afirmar que não existe mais escravidão na Virgínia. Isso sem tirar as correntes de um só braço, nem levar nenhum escravo à liberdade”, escreveu Maury. “Havia a questão da representação política. Os confederados colocaram a Amazônia no contexto da visão da liderança sulista, que acreditava ser necessário expandir a escravidão para um novo território para que aquela liderança continuasse a existir. Os confederados viam a escravidão como algo permanente e necessário ao seu modo de vida e estavam dispostos a derramar quanto sangue fosse preciso para impedir a abolição”, avalia Barbara Weinstein. “Só assim se pode entender a amplitude das propostas de Maury, que se convenceu de que o cenário privilegiado dos interesses sulistas estava na Amazônia. A medida que novos estados eram incorporados à União e a população dos estados não-escravistas crescia, o Sul viu-se ameaçado em sua representatividade. Expandir e anexar outras territórios era uma forma de equilibrar as forças políticas”, completa Maria Helena. “No momento em que os confederados resolveram se separar dos EUA, muitos se preocuparam em como vencer um Norte industrializado e mais populoso. O Deep South (o Sul profundo) aos poucos foi se convencendo de que teria que fazer uma aliança com o Brasil, o Deepest South (o Sul mais profundo) para sobreviver e assegurar que a escravidão seria mantida naquele hemisfério. Para figuras como Maury, o Brasil era não apenas a esperança de vencer a Guerra Civil, mas também um refúgio ideal em caso de derrota. Era o chamado slave imperialism, o imperialismo escravista”, afirma o brasilianista Gerald Horne, catedrático em história afro-americana da Universidade de Houston.
Para tanto, tomar a Amazônia era uma necessidade e mesmo um dever, parte do “destino manifesto”: “Quem vai povoar o vale do poderoso Amazonas? Aquele povo imbecil e indolente ou ele será desenvolvido por uma raça com energia e engenhosidade capaz de domar a floresta e trazer à tona os recursos que jazem ali?”, perguntava-se Maury em carta ao cunhado William Herndon, encarregado pela Marinha dos EUA de explorar a área sem nenhuma permissão do governo brasileiro. “Creio que o Brasil não vai colocar obstáculo ao povoamento da região por cidadãos americanos que escolherem ir para lá com seus escravos. Assim como o vale do Mississippi foi a válvula de escape para os escravos do Norte, agora livres, o Amazonas será para aqueles escravos do Mississippi”, acreditava o militar confederado. O estabelecimento de uma “República do Amazonas” seria o ápice da expansão sulista sobre o Brasil, a ponto de o abolicionista negro Frederick Douglass confessar sentir-se alarmado com esses planos amazônicos que, segundo ele, “tinham sido iniciados por capitalistas de nossas metrópoles e por meio de expedições ao Brasil, país com que, sem sucesso, eles tentam estabelecer um tratado para a proteção e propagação da escravidão no continente”. “Para os confederados era necessária a combinação entre as duas grandes nações escravistas da América, uma forma de resistência à pressão abolicionista do resto do mundo”, nota Horne. Seward, por meio de Webb, por várias vezes repreendeu o Brasil por sua suposta colaboração com embarcações sulistas que desembarcavam no Rio e em Salvador, bem como temia que o Império reconhecesse oficialmente os estados confederados.
Foi justamente o projeto de um “imperialismo escravista” da absorção do Deepest South, como o preconizado por Maury na década de 1850, que, em 1862, jogou um balde de água fria na proposta semelhante feita por Webb. “Foi necessária a cruzada de Maury para que o Brasil saísse do seu imobilismo e se dispusesse a enfrentar a questão da navegação do Amazonas. Em 1851, o governo imperial já cuidava de se entender com os estados ribeirinhos do Amazonas e seus afluentes, para uma futura política de limites de navegação e proteção do Amazonas”, explica Nícia Vilela em seuA Amazônia para os negros americanos. Assim, apenas em 1867 é que o Brasil se sentiu à vontade, dado o novo quadro estável de relações interamericanas, para abrir o Amazonas para a navegação internacional. “A reação brasileira ao projeto de Webb desenhou-se, em verdade, a partir da pressão da proposta de Maury, uma década antes. Enquanto o americano, nos EUA, propagandeava as vantagens de se ocupar o vale amazônico e as riquezas que seriam geradas pela livre navegação do rio, o Brasil começou a fazer esforços diplomáticos e políticos brutais para segurar o avanço norte-americano sobre a soberania do Império”, nota Maria Helena. Logo, não deveria ter causado surpresa a Webb a negativa do governo brasileiro.
“General: tive o prazer de ler com a máxima atenção os documentos que me confiou e agora lhe dou retorno em relação ao seu plano de introdução de negros libertos no Brasil. Devo admitir que o objetivo em si é altamente interessante. É minha opinião pessoal que suas ideias merecem consideração e que muitas delas, em circunstâncias favoráveis, seriam de grande utilidade. No entanto, nada dessa ordem poderá ser tentada em nosso país, pois temos uma lei que impede expressamente a entrada de qualquer negro liberto em nossas fronteiras. Encaminho a lei para seu conhecimento. Renovo meus votos de apreço e estima. Abrantes.” O projeto foi arquivado. “A elite política brasileira já estava focada na atração de imigrantes brancos europeus para o Brasil: planos de imigração e colonização estavam totalmente orientados no sentido do ‘branqueamento’ da população brasileira, e mesmo propostas para trazer trabalhadores chineses falhou porque o Parlamento não aceitou a vinda de ‘não-brancos’”, analisa Barbara. “Havia também o desejo de proteger a Amazônia de intrusões comerciais estrangeiras, especialmente num momento em que o comércio de borracha se firmou como uma fonte de divisas significativas. Até se pensou em criar colônias agrícolas no Pará nessa época, mas seriam para brancos europeus.” Do lado americano, a rejeição brasileira incentivava cautela.
“Você pensa que avista o dedo de Deus apontando para as províncias do Norte do Brasil como a terra de promessas, descanso e reparação dos escravos dos estados do Sul desta República e pede ao presidente poder para negociar um tratado para efetivar a remoção de tais homens. O presidente não pode, sem consideração adicional, atender a este pedido”, escreveu Seward em carta aberta a Webb, publicada no The New YorkTimes. “O presidente, embora negando conceder a você, no momento, a autoridade que você solicita, convida-o para a continuação das suas discussões, a partir da importante posição que você ocupa em um país de condição tão sugestiva para o pensamento liberal.” Secretário de Estado e presidente pareciam não falar a mesma língua (basta lembrar que Seward foi preterido pelo Partido Republicano por Lincoln para concorrer à Presidência): “Eu declino de mudar a colônia de negros libertos para qualquer Estado sem antes obter o consentimento do seu governo. Ao mesmo tempo, ofereci aos vários Estados situados abaixo dos trópicos, ou tendo colônias nestes lugares, para negociar com os EUA, sujeito ao consentimento do Senado, em prol da emigração voluntária de pessoas daquela classe para os seus respectivos territórios, com a condição de que sejam recebidas de forma justa e humana. Lamento dizer que muitos que gostariam de fazer isso não o fazem porque apenas Libéria e Haiti estão disponíveis e as pessoas não estão tão interessadas em ir para esses lugares tanto quanto para outros”, afirmou Lincoln em seu State of the Union, deixando claro que ainda tinha esperanças em ver concretizada a deportação voluntária.
“O senhor Seward falou bastante sobre a questão da emigração da população negra. Homens de peso, entre eles o presidente Lincoln, acreditavam que a melhor coisa para ambas as raças era a separação e a conservação do Norte apenas para os brancos. Mas membros do Partido da Emancipação eram contra essa remoção, pois não consideravam sábio abrir mão de tantos músculos e braços e se era prudente entregar esse poder para nações que não necessariamente serão sempre amigas dos EUA”, escreveu Lord Lyons, ministro da Inglaterra baseado em Washington, para seus superiores, relatando uma conversa que tivera com o secretário de Estado poucos dias antes da proclamação da emancipação. “Lincoln, no entanto, presidiu uma nação em guerra violenta e precisava de apoio do exterior e, assim, a última coisa que desejava era se envolver num conflito com uma nação estrangeira. Qualquer interesse que tivesse no projeto ou no Amazonas era menor se comparado com a sua necessidade de manter boas relações diplomáticas com o Brasil”, analisa Barbara. “Uma razão para que os negros americanos permanecessem no Norte foi por causa da relutância de algumas nações, em especial o Brasil, de recebê-los em meio a uma Guerra Civil, da mesma forma que a simpatia desse país pelos estados confederados foi fundamental para os rebeldes”, acredita Horne. Isso foi determinante na vinda, após a guerra, de ex-confederados ao Brasil.
“Muitos emigraram e até tentaram trazer seus escravos (alguns até conseguiram), pois queriam viver num país onde o escravismo permanecia. A maioria se desencantou e voltou, mas muitos ficaram e fundaram comunidades. Alguns até pensaram em usar o Brasil como plataforma para construir um novo império escravagista e reverter o resultado da guerra”, diz Horne. Mas o dedo de Deus agora estava nas mãos do Norte.