Ao longo da história a perseguição, o martírio e o extermínio foram constitutivos da trajetória de muitos povos. Com o livro não tem sido diferente: parece-me que em sua aventura o fogo sempre foi seu mais cruel algoz. Quem já não ouviu histórias sobre a destruição da célebre biblioteca de Alexandria? Na idade moderna, porém, é difícil de esquecer os livros considerados “degenerados” que arderam nas fogueiras patrocinadas pelos nazistas. No cinema, no filme
451 Fahrenheit, o diretor Bradbury, leva a crueldade à tela e imagina uma sociedade avessa aos livros que quer a todo custo desvencilhar-se das memórias que esses objetos insistem em trazer à tona. Os bombeiros são então encarregados da destruição. Detalhe: 451 graus Fahrenheit é precisamente a temperatura necessária para a queima do papel. A representação continua nas artes: no quadro
A pregação de São Paulo em Éfeso, do pintor Le Sueur, vê-se São Paulo, de pé, sobre uma estela com uma barba e uma túnica, bem ao estilo dos modernos aiatolás. Os fiéis o escutam atentamente; na parte inferior do quadro, de joelhos, um escravo negro queima livros. Aproximando-se (para quem vê a pintura no Louvre), é possível ver detalhes das páginas: figuras e fórmulas matemáticas. É o escravo, provavelmente, recém convertido, a queimar a cultura grega.
E sempre foi assim: o vencedor se encarrega, primeiro, de apagar as linhas, os traços e o saber do povo subjugado. Assim fizeram os mongóis quando invadiram o oriente, assim fizeram os cristãos na época das cruzadas (Jerusalém foi praticamente destruída quando os cruzados lá entraram!). Os espanhóis não fizeram outra coisa quando eliminaram os vestígios das extraordinárias civilizações pré-colombianas sob as ordens de Cortés e Pizarro e, na Espanha, Isabel de Castela mandou incinerar todos os livros muçulmanos encontrados em Granada. Em 2003, a biblioteca de Bagdá, também padeceu com a destruição como se ainda estivéssemos em tempos selvagens, d’antanho.
Mas, o mais triste é quando o livro conhece inimigos em seu próprio seio: em torno dos movimentos de 1968, na França, existiu um
Comitê de Ação Estudantes-Escritores que agia sob ardor psicodélico. No fervor contra o ensino tradicional, tão na moda nos anos 60, o grupo clamava por um
novo saber.
Maurice Blanchot – acreditem! militava nesse comitê, que pedia, em especial, o desaparecimento do livro, acusando-o de manter o saber aprisionado
[i].
No Brasil, a perseguição ao livro tem capítulo curioso com os movimentos ditos revolucionários, em especial a
Inconfidência mineira e o
Movimento democrático baiano. Muito embora rebelião armada ou transformação violenta de uma forma de governo apareçam entre muitos de seus significados, parece haver consenso geral entre os estudiosos de que a palavra revolução soa forte para definir os movimentos revoltosos brasileiros. Melhor o uso de adjetivos que, menos sonoros, se adequam com mais precisão à extensão dos acontecimentos, como sublevação, agitação ou mesmo perturbação.
“No Brasil, o processo de emancipação não chegou em nenhum momento a ser um processo revolucionário, e (
...) nenhum dos homens, mesmo os mais atrevidos, que forjaram o clima de sentimentos propício à nova ordem de coisas, pensou, então, em termos de autêntica revolução”, afirma Sérgio Buarque de Hollanda em introdução ao livro
Cultura e Sociedade no Rio de Janeiro 1808-1821, de Maria Beatriz Nizza da Silva; entretanto, Hollanda afirma o caráter radical da agitação baiana, apesar de considerá-la natimorta, resultado provocado por esperanças mentirosas e aspirações mal articuladas. Sobre a
Inconfidência mineira, Wilson Martins
[ii], lembra que muitas das “racionalizações posteriores foram ideológicas (sobretudo por parte de historiadores imaginosos), mas cujas raízes e intenções eram limitadamente econômicas”, enquanto José Veríssimo a esses acontecimentos se refere como “pomposa e impròpriamente apelidados de revoltas e até de revoluções pelos historiadores indígenas, contra o governo colonial”.
[iii]
Ora, se extensos, influentes e capazes de desorganizar a sociedade e a política da metrópole ou não, para o governo reinol o que importava era eliminar a origem. E na origem das ideias conspiratórias havia a filosofia e os teóricos iluministas, termos que à época em Portugal, sobretudo politicamente, tinham conotação pejorativa e evocavam a Revolução Francesa. Voltaire, Rousseau, Montesquieu, D’Alembert, Diderot eram considerados pensadores notoriamente anticatólicos; seus nomes, portanto, sinônimos de ateu e materialista. Assim, tê-los à mão significava atuar como elemento multiplicador de ideias que iam de encontro àquelas aceitas pelo Estado e a Igreja. O desterro e a pena capital foram punições comumente aplicadas aos envolvidos, a exemplo de Tomás Antônio Gonzaga, o criador de
Marília de Dirceu, que no degredo, na África, quis a vontade romântica a morte do poeta em extrema miséria física e moral. Tais fatos, porém, foram revistos e corrigidos por Frieiro a partir do estudo do Professor M. Rodrigues Lapa (
Marília de Dirceu e mais poesias de Gonzaga, Livraria Sá da Costa, Lisboa, 1937).
[iv]
Muito do que se sabe dos inconfidentes provém dos
Autos de devassa, que Eduardo Frieiro esmiúça em seu
O Diabo na Livraria do Cônego, estudo que aponta as leituras dos perseguidos poetas, oradores, eruditos, jurisconsultos e homens de ciência. Das bibliotecas aí apontadas, sem sombra de dúvida, se destaca a do
Cônego Luís Vieira da Silva, lente de filosofia no Seminário Episcopal de Mariana e considerado o mais instruído e eloquente dos conjurados. Dentre livros, os quais, hoje, só nos chamam a atenção como simples curiosidades da história literária, estão aqueles que, se há muito já não influenciam os espíritos como no tempo do Cônego, nos interessam por se tratar de veículos transmissores das ideias enciclopedistas e racionalistas, enfim, o espírito da Revolução.
A atração que desperta a biblioteca de Luís Vieira da Silva não é tanto pela quantidade, já que possuía cerca de oitocentos volumes, de um total de 270 obras, mas sim a qualidade das obras ali reunidas, capazes de satisfazer qualquer exigente leitor da época. Mais da metade delas era em latim – o idioma internacional de então; havia ainda originais em espanhol, inglês e italiano e cerca de noventa deles em francês. Como se vê, homem que, embora austero e desprovido materialmente - conforme a relação dos bens sequestrados, conseguiu reunir uma biblioteca notável para o seu tempo e lugar.
A julgar pelos livros não se tem só a prova da falha dos mecanismos de censura, como também se pode atestar o adiantado e alto índice de ilustração em que viviam os inconfidentes. “Não é pois arriscado afirmar que os intelectuais de Vila Rica leram tudo o que quiseram ler”
[v]. De Voltaire, Luís Vieira da Silva, possuía as
Oeuvres de M. Voltaire e a obra do jesuíta l’Abbé Claude-François Nonnotte -
Erreurs de M. Voltaire, de 1762. Em se considerando ser o cônego um intelectual, um ideólogo, as tais
Oeuvres de M. Voltaire, provavelmente se tratavam de obras as quais o colocavam no rol dos indivíduos que ora tramavam contra os sustentáculos da ordem, suposição em parte devida às imprecisões das anotações registradas nos autos de sequestros, na maioria das vezes generalizadas, cujas indicações não se estendem para além do nome do autor.
Em se tratando ainda da biblioteca de Luís Vieira da Silva, já não é sem tempo defini-lo como bibliófilo, tal a diversidade de autores presentes em suas estantes. Nomes como Descartes, Montesquieu, Diderot, d’Alembert, Condillac, Mably, Corneille, Racine, Milton, Cícero, Suetônio, Quintiliano e Voltaire pululam entre dezenas de outros condenados ao ostracismo. Os instrumentos de censura eram claros em relação a Voltaire – baniam-no. Não por outra razão sua presença ganha destaque entre os livros do cônego. Além do que, sua leitura era conjugada a do “Contrato Social, que andava de mão em mão no Brasil, como em toda a América. [Assim] Voltaire fora o bota-fogo número um, o incendiário principal de uma época que o absolutismo dos governantes, a corrupção dos aristocratas, a depravação do clero e a licença geral dos costumes já haviam carcomido”
[vi], razão pela qual o iluminista figura também entre os bens sequestrados de Alvarenga Peixoto, Coronel José Resende Costa e Cláudio Manuel da Costa, com o
Essai sur la poésie épique, fonte de inspiração para
Vila Rica, seu poema épico.
E é ao lado de textos revolucionários como a
Fala de Boissy d’Anglas, de 30 de janeiro de 1795 e
Orador dos Estados Gerais, de 1789, em cujas páginas se pode encontrar a afirmativa de que "ce sont les Nations qui ont fait les Rois, et non les Rois qui ont fait les Nations", uma heresia à época, que vamos encontrar o
Dictionnaire Philosophique de Voltaire, na opinião de Borba de Moraes, o único texto que podia ser verdadeiramente taxado de ser contra ‘o Trono e o Altar’
[vii], encontrado na biblioteca do tenente Hermógenes Francisco de Aguilar Pantoja.
A segunda das bibliotecas existentes à época do levante de 1798 era pertencente ao cirurgião e lavrador de canas Cipriano José Barata de Almeida, totalizando vinte e dois títulos, entre os quais, obras clássicas como
Elementos de Euclides, além de Condillac, Bomare e Vertot com sua
Historia das revoluçoens acontecidas no Governo da Republica Romana, de 1718.
Pouco mais de três décadas depois e todos esses acontecimentos estarão envoltos pela poeira do tempo. O cenário político-social sofrerá transformação radical. A guerra que se travará no outro extremo do país não mais será de estrito cunho ideológico; mas sim em busca da atualização, da promoção e do progresso da cultura nacional, iniciativa que se inicia logo após o governo regencial.